As diferenças políticas na esquerda não podem ser superadas senão (também) pelo modo das críticas e polêmicas. Esse é o método do movimento operário.
Por Chico da Silva
Há um debate em aberto na esquerda brasileira. Não é
dos “grandes temas”, mas é um assunto muito importante. De uns tempos para cá,
muitos ativistas e também algumas correntes políticas nos censuram por criticar
aberta e permanentemente ideias e ações das quais não concordamos. Foi assim
com a polêmica pública que fizemos com os Black Blocs e outros grupos
anarquistas e também com várias correntes do PSOL. Genericamente, os militantes
“anticrítica” tem duas posturas, muitas vezes combinadas: uns alegam que a
crítica pública enfraquece e divide o movimento criando um ambiente fraticida,
e com isso não contribuindo para a unidade da esquerda e da classe. Para
outros, a crítica ajuda a repressão e faz coro a criminalização do movimento.
Será?
A história do movimento dos
trabalhadores é também uma história de críticas e diferenças públicas
Desde o início do movimento operário, diferentes
correntes de pensamento se criticaram mutuamente. Era comum a elaboração de
panfletos, artigos e até obras inteiras para criticar diferentes ideias e
ações.
Em 1846 Proudhon, um dos precursores do anarquismo,
não só fez a crítica à Marx, mas escreveu uma obra de dois tomos (a filosofia
da miséria) para criticar as ideias econômicas de Marx. Em resposta, Marx escreveu
um livro chamado “a miséria da filosofia” (1847). Outros exemplos são a
“crítica ao programa de Gotha”, crítica de Marx ao grupo Lassalista e a
brochura “do socialismo utópico ao socialismo científico” que entre outras
coisas criticava os socialistas utópicos franceses. Não poucas vezes também,
Marx, Engels e outros pensadores escreveram cartas e artigos de polêmicas inclusive
a jornais “da ordem” (aqui entendidos como a imprensa não operária)[1].
Tempos depois, Rosa Luxemburgo escreveu a obra
“reforma ou revolução” contra Bernstein, e Lenin produziu “o estado e a
revolução” contra Kautsky, Bernstein, Plekhânov e os anarquistas.
Trotsky também escreveria muitas obras, artigos e
manifestos de polêmicas, muitas contra o stalinismo. Uma delas é a “revolução traída.
O que é e para onde vai a URSS?”. Foi inclusive por sugestão de Trotski que Max
Eastman publicaria o “testamento de Lenin” no New York Times. Com esse espírito, o primeiro texto escrito por
Trotsky após ser expulso da URSS foram artigos de polêmica com o stalinismo
publicados no New York Times e Daily Express[2].Por
isso Stalin o acusou de “ter se vendido a burguesia mundial para conspirar
contra a URSS”.
Pelo lado dos anarquistas, Mikhail Bakunin não deixou
por menos e em 1882 após ser expulso da I Internacional fez um ensaio – “A
Associação Internacional dos Trabalhadores e Karl Marx[3]”
(em tradução livre) – com duríssimas críticas à Marx e ao Conselho Geral. Outro
grande anarquista, Nestor Makhno escreveu inúmeros artigos e manifestos de
polêmicas públicas com os comunistas. Em um deles – “Para todos os camponeses e
trabalhadores da Ucrânia[4]”
(em tradução livre) – escrito durante o levante por ele liderado contra o
governo soviético, ele pede que o manifesto seja transmitido por telefone,
telégrafo, enviado por correio ou lido em assembleias de fábricas, vilas, etc.
Não tenhamos dúvida que se fosse nos dias de hoje, e pudesse, Makhno usaria do
facebook e todos os meios disponíveis.
Errico Malatesta, anarquista italiano, escreveu a
brochura amplamente difundida “Os bandidos trágicos[5]”
(em tradução livre) em que criticava abertamente as ações terroristas de grupos
que se denominavam anarquistas e manchavam com isso a tradição do movimento
anarquista. Anos mais tarde, polemizaria publicamente com seu amigo anarquista Kropotkin
sobre a posição dele em relação a I Guerra Mundial. Cem anos depois (em janeiro
desse ano) um operário uruguaio (membro da Organización
Socialista Libertaria e responsável pela publicação Rojo y Negro) em entrevista para o El País – maior jornal do Uruguai, criticou as ações de quebrar
bancos e vidraças por parte dos “camaradas anarquistas”[6]:
“Es contraproducente; permite seguir estigmatizando al anarquismo como algo que
no es. Nos aísla del sentir popular (...) tampoco eso define nada: una vidriera
más, una menos”.
Aqui no Brasil não foi diferente. Já em 1922 o jornal
anarquista “a plebe” fazia duríssimas críticas ao bolchevismo e ao Estado
Soviético[7].
Depois, profundamente contaminado pelas práticas stalinistas (e seguindo a
risca as calúnias, falsificações e perseguição aos trotskistas), durante todo o
período de auge do PCB, que segundo Mário Magalhães[8]
chegou a ter 140 jornalistas na redação de seu órgão de imprensa da direção
nacional, usou de todo seu aparato para demolir ideias opositoras – externas e internas.
Mesmo durante a ditadura militar e com toda a
repressão, as correntes guerrilheiras travavam entre si batalhas políticas
gigantes. Havia também outros grupos que mesmo sob os anos de chumbo não absolveram
outras correntes de crítica. O grupo Ponto
de Partida (que mais tarde daria origem à Convergência Socialista e então
ao PSTU) teve como primeiro manifesto público (1971) o documento “a propósito
de um sequestro[9]”
em que criticava a guerrilha e o sequestro do embaixador Elbrick. E assim se
seguiu como prática comum no movimento operário e sindical até os dias de hoje.
A crítica enfraquece a unidade da
esquerda?
A disputa política e a polêmica entre as diferentes
correntes e tradições é própria da esquerda. As correntes de esquerda batalham
entre si para convencer umas às outras, mas principalmente a classe
trabalhadora da justeza de suas posições e o equívoco das posições de outras
correntes. Nós não devemos ter receio algum de apresentar nossas diferenças
perante a classe trabalhadora. O tempo e a própria classe serão os juízes. Se
erramos, digamos que erramos. A prática da esquerda tem de ser a de sinceridade
total com os trabalhadores, não há o que esconder.
Porém, aqueles que batalham para que não haja crítica
na verdade batalham pela abstenção política e o espontaneísmo. Isso é uma forma
de suicídio político e avesso a necessidade do movimento se tornar cada vez
mais consciente, organizado e politizado. E depois, na medida em que as ideias
revolucionárias contagiarem a mente e o coração em escala de milhares será
impossível reduzir os debater a círculos fechados e as polêmicas estarão na
boca do povo e expostas nos veículos de imprensa operária, mas inevitavelmente
também da imprensa burguesa.
Pelo contrário, o debate público – se feito sem
abandonar a moral revolucionária – só pode fortalecer o movimento. Ao favorecer
a atividade política como um todo, favorece a superação de ideias e põe à prova
a todo momento as diferentes posições, empurrando o movimento operário a tirar
conclusões (“sínteses”).
A importância da escrita na polêmica
Alguns ativistas alegam que as polêmicas deveriam ser
feitas apenas nos espaços de assembleias ou fóruns do movimento. Isso não é uma
questão de princípio. É uma questão de momento, de tática e conveniência.
Podemos por vezes optar por limitar a crítica aos fóruns do movimento, mas não
há problema algum se decidirmos recorrer (e na imensa maioria das vezes o
faremos) politicamente ao conjunto da classe e não só aos grupos de vanguarda.
Depois, pelas características próprias de uma reunião,
plenária ou assembleia, limitar as críticas a esses espaços necessariamente
limitaria a intensidade e a profundidade da crítica. Seria possível Marx
apresentar todas as suas diferenças com Proudhon numa reunião do Conselho Geral
da I Internacional? Não, claro que não. Podem ser ações combinadas, dentro e
fora, mas uma não supre automaticamente a outra.
Além do mais, a escrita possui um atributo que a fala
não possui: ela está mais sujeita a verificação “histórica”. As testemunhas
oculares e outras evidências são mais perecíveis se não registradas de forma
escrita. E a verificação histórica é muito importante para provar a coerência,
constância, erros e acertos das correntes e indivíduos. Isso proporciona fazer
balanços e análises, corrigir os erros e apontar novos rumos. Por exemplo, em
janeiro de 1964, já na iminência do Golpe, o PCB através de uma entrevista de
Luiz Carlos Prestes para a tv, afirmou que João Goulart era o “chefe da
revolução brasileira”[10].
Nem 3 meses depois com a total covardia do “general revolucionário”, a história
(e a classe trabalhadora) cobrou seu preço e o PCB nunca mais se reergueu.
A crítica fortalece a repressão?
Como exceção e apenas em momentos históricos raros, há
situações, fatos e (eventualmente) pessoas, que se tornadas públicas de fato
podem comprometer a esquerda e favorecer a repressão. Por isso Trotski lacrou
um setor dos seus arquivos para que fossem abertos apenas 40 anos depois[11].
A situação da II Guerra Mundial poderia comprometer muitos de seus
correspondentes. Por isso sob a forte repressão que estamos vivendo no país não
saímos divulgando a lista de todos os presentes na última assembleia ou
plenária do movimento. Só para dar dois exemplos. Mas isso não pode ser
esticado ao debate político, às diferenças de tática, ação, programa e
estratégia, pois é da natureza da atividade política revolucionária o confronto
de ideias e opiniões.
Sem dúvida, as polêmicas contra as ações dos Black
Blocs ajudaram a isolá-los perante a opinião pública. Mas ainda somos muito
pequenos para que nossa posição seja decisiva para influenciar a opinião do
conjunto da classe. De qualquer forma, os “anticrítica” – conscientemente ou
não – querem colocar pedaços da esquerda em redomas de vidro, criando setores
intocáveis e inatacáveis. Impossível camaradas! Sobretudo quando a ação de um
pedaço da esquerda gera implicações de forma tão decisiva ao conjunto da
esquerda. Dizer que tais ações são inadequadas não favorece a repressão, mas
ajuda a construir um polo de resistência e crítica às ações que não
compactuamos. Faríamos a mesma coisa caso algum grupo se lançasse na guerrilha.
E fizemos durante todo o giro a direita do PT polêmicas sem precedentes com o
que era a mais importante organização de esquerda no Brasil.
Dentro da necessária e natural crítica mútua dentro da
esquerda, o que não é aceitável é o método de calúnias. É porém o que,
infelizmente, muitos dos “anticríticos” fazem de forma permanente quando por
exemplo nos chamam de P2TU (“P2”: policiais infiltrados).
Calúnia é a mentira deliberada para desqualificar e
destruir os adversários políticos. Isso é terrível não só porque confunde os
trabalhadores, mas porque dissemina a desconfiança dentro do movimento, leva os
trabalhadores a desconfiar de suas próprias organizações e em última instância
de suas próprias forças. O propagandista nazista Goebbels estava correto ao
afirmar que “uma mentira repetida mil vezes transforma-se em verdade” e ao
orientar “minta que alguma coisa sempre ficará”.
Mas foi o stalinismo que inaugurou o método de
calúnias, mentiras e falsificações como regra na disputa política. Ao
apresentar suas diferenças políticas e teóricas com outras correntes, caiu na
moral do “vale tudo” e tratou sempre de desqualificar o próprio debate, caindo
numa discussão superficial de intrigas.
Aqui há uma diferença importante entre a calúnia e a
polêmica: “(...) [os] debates inclusive podem ser duros e, em seu curso,
pode-se qualificar uma política ou um setor de ‘oportunista’, ‘sectário’, ‘ultraesquerdista’,
’burocrático’, etc. Esses são qualificativos políticos que não afetam e nem
deixam dúvidas sobre a moral de quem defende tais políticas. Outra coisa completamente
diferente são as acusações sem provas de que determinada posição é levantada
por que tal pessoa ou corrente é ‘agente da patronal’, ‘é pago pelo Estado
burguês’, ou ‘é agente do imperialismo’”[13].
Na certeza de que já cometemos e voltaremos a cometer
vários erros e excessos, as diferenças políticas na esquerda não podem ser
superadas senão (também) pelo modo das críticas e polêmicas. Esse é o método do
movimento operário.
Ao debate camaradas, só a partir dele poderemos tirar
lições e aprender com os erros! Estimulemos ao máximo a exposição de críticas e
diferenças (sobretudo as mais importantes, estratégicas e programáticas) entre
nós. Isso não é senão intensificar a atividade política e o exercício de
reflexão do movimento operário, condição para vencer!
[1]
MEHRING, Franz. Karl Marx, a história de sua vida. São Paulo: Editora
Sundermann, 2013.
[2]
DEUTSCHER, Isaac. Trotsky, o profeta banido. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2006.pp 29
[8]
MAGALHÃES, Mário. Marighella, o guerrilheiro que incendiou o mundo. São
Paulo:Companhia das Letras, 2012.pp 159
[10]
MAGALHÃES, Mário. Marighella, o guerrilheiro que incendiou o mundo. São
Paulo:Companhia das Letras, 2012. pp 292.
[11]
DEUTSCHER, Isaac. Trotsky, o profeta banido. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2006.pp 18 e ss.
[12]
Muitas consultas no texto da LIT QI “as calúnias e a moral revolucionária”. Ver
mais em https://www.archivoleontrotsky.org/download.php?mfn=13064