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29 de abr. de 2015

As origens do materialismo, de George Novack


Uma obra educativa e instigante

Por Diego Braga - da Secretaria de Formação do PSTU Porto Alegre


George Novack foi um dos mais brilhantes intelectuais marxistas do século XX e pertenceu a um dos mais importantes partidos da Quarta Internacional, o Socialist Workers Party  (SWP – Partido Socialista dos Trabalhadores) dos Estados Unidos. Graduara-se com honras em 1927 por nada menos que a Universidade de Harvard, onde estudara filosofia e literatura. Trazia consigo um cabedal cultural sólido e raro entre seus pares. Apesar de suas credenciais louváveis, que poderiam lhe ter rendido louros no universo acadêmico, Novack dedicou sua produção mais à educação teórica da classe trabalhadora que à elite intelectual. Compreendera o marxismo como poucos.

Proposto como continuação ao excelente Introdução à Lógica Marxista (2006), que aborda especificamente o aspecto dialético do pensamento de Marx, As Origens do Materialismo (2015) pretende se focar no aspecto materialista do mesmo, em perspectiva histórica, mas, como o outro livro, com finalidade sobretudo didática de apresentar as linhas gerais e decisivas do assunto. Novack teve a pretensão de escrever, com As Origens do Materialismo, parte de um trabalho mais amplo que abarcasse também o quase desaparecimento do materialismo durante o medievo – não fossem suas aparições esporádicas na literatura europeia e seu cultivo por judeus e árabes no mesmo período – bem como seu reaparecimento e amadurecimento com o advento do mundo burguês.

Não estamos diante de uma história da filosofia. Antes, o livro discute as origens materiais, as bases sociais, as contribuições epistemológicas e as implicações políticas de uma de suas correntes. O desenvolvimento do materialismo ocidental atravessou três fases, dando origem a três materialismos distintos: 1) antigo: de Tales (séc. VI a.C.) a Epicuro (séc. I a.C.); 2) burguês: da Itália do séc. XVI a Feuerbach no séc. XIX; 3) dialético: de Marx e Engels, no séc. XIX, quando chega ao pleno desenvolvimento, até hoje. Cada uma destas fases teve etapas distintas, mas o estudo de Novack se foca apenas no materialismo antigo que, por si só, já consiste num assunto demasiadamente extenso para um livro tão curto. Tarefa, portanto, árdua, mas realizada com maestria pelo autor, dotado de singular poder de síntese e capacidade de simplificar sem falsear, donde resultam poucas imprecisões relevantes e apenas uma lacuna considerável.

Materialismo e idealismo

Uma síntese resumida de quase mil anos de desenvolvimento de um rico pensamento filosófico obviamente precisa estar estruturada pelas linhas de um esquema interpretativo. A mais evidente linha de força do referido esquema é a oposição entre materialismo e idealismo. Novack procura, ao longo das 239 páginas deste livro, identificar cada pensador individual ou escola específica à corrente materialista ou à idealista. É neste sentido que se deve entender o procedimento de Novack, que muitas vezes apara as arestas das especificidades e contradições de distintas correntes, escolas e pensadores para obter contornos mais homogêneos e, assim, viabilizar uma esquematização inteligível. Isto tende a embaçar as distinções entre as escolas e é neste ponto que identificamos um grande mérito de Novack: dentro de suas limitações de tamanho e de propósito, As Origens do Materialismo nos mostra não apenas as características gerais da filosofia materialista antiga ao longo de sua história. Igualmente evidencia, de modo muito coerente e perspicaz, suas principais diferenças internas e as que há em relação à corrente oposta. Também deixa entrever como traços de materialismo e de idealismo, apesar de radicalmente opostos, misturam-se em todos os pensadores da antiguidade, sem render-se à dissolução da fronteira entre as duas correntes (tão em voga na pós-modernidade) ou à preguiça mental que apressadamente alega a impossibilidade de classificar determinado pensador como materialista ou idealista.

Os méritos do livro não ficam por aí. O esquema de oposição entre materialismo e idealismo encarna-se numa dialética cujos resultados revelam a complexidade do tema. Mostra-nos que materialismo e idealismo, em sua oposição, contribuíram com o desenvolvimento um do outro, seja pela oposição desafiadora propriamente dita, seja pela apropriação direta das descobertas de uma corrente pela outra. Assim, Novack nos revela que os postulados da lógica, a teoria do conhecimento e os primeiros avanços na psicologia se devem sobretudo aos idealistas, mas foram incorporados e desenvolvidos pelos materialistas em novas bases. Da mesma forma, a pesquisa das incipientes ciências naturais, da constituição da vida, da matéria, da história humana e de seu desenvolvimento social, de suas leis e instituições, capitanearam-na principalmente os pensadores materialistas, cujas descobertas não raro foram apropriadas pelas construções teóricas idealistas. Este movimento do pensamento aparece ao longo do livro como parte integrante dos processos históricos políticos, econômicos e sociais.

A oposição talvez mais radical entre as duas correntes situa-se no campo do embate entre religião e ateísmo, mais que no campo da mistificação em oposição à ciência, por dois motivos. Primeiro porque Novack reconhece que, a despeito de suas descobertas formidáveis, os pensadores materialistas tinham muitas ideias confusas ou nubladas por ideologias religiosas e trabalhavam com limitações técnicas e sociais comparativamente enormes às da ciência moderna. Seu método, contudo, afirma Novack, desenvolveu-se precipuamente nas mesmas linhas científicas que as atuais.

A segunda razão é que os idealistas deram muitas contribuições inestimáveis ao desenvolvimento das ciências – como a concepção de leis racionais matemáticas regendo o conjunto da realidade, por exemplo – muito embora o idealismo, no essencial, seja oposto ao conhecimento científico materialmente fundado. Compreende-se, então, que o compromisso radical do materialismo com a concepção laica de mundo, ainda que nenhum dos materialistas antigos tenha sido declaradamente ateu, esteve sempre na raiz de uma visão de mundo emancipadora para o homem, embora tenha a todo tempo as limitações impostas pelas condições materiais a tal projeto emancipatório. O idealismo, por sua vez, ao associar-se, sob diversas formas e até hoje, com pensamentos de caráter mistificador e/ou religioso, ainda que racionalista, aprisiona o homem às ideias que mais ou menos explicitamente o condenam à inconsciência acerca de seu protagonismo como agente histórico.

Origens da filosofia

O ponto mais alto desta obra provavelmente está na análise das raízes materiais e históricas do pensamento filosófico. Não apenas as do materialismo, pois – já como forma de argumentar a favor do pensamento materialista, uma vez que o livro desde o início não faz enganosas profissões de neutralidade – o autor mostra que, irrecusavelmente, o idealismo também não pode ser compreendido em seu surgimento e desenvolvimento sem adjudicarmos devidamente suas bases materiais. A referida análise, cujo núcleo vai da página 41 à 88, além de ocupar diversos outros trechos do livro, é notável porque sintetiza uma massa imensa de conhecimentos das áreas de estudos clássicos no âmbito da História, Arqueologia, Linguística, Literatura, Filosofia e Economia. É surpreendente, também, sua atualidade, para um livro escrito na década de 50. De modo geral, a investigação das bases materiais e históricas que condicionaram o surgimento da filosofia e do pensamento materialistas vai de encontro à visão idealista – muito comum entre classicistas da época de Novack e ainda em vigor hoje – do “milagre grego”, segundo a qual a filosofia e o esplendor da civilização da Grécia Antiga não teriam explicação plausível, nem antecedentes ou grandes débitos para com outras culturas. Seria fruto do “espírito grego”, essencialmente.

Novack mostra que o desenvolvimento da civilização grega clássica e de sua filosofia se deve a fatores como a posição geográfica da Grécia no Egeu e a abundância de recursos naturais que foram fundamentais para o desenvolvimento do comércio; o desenvolvimento da metalurgia do ferro que fez crescer o contingente de artesãos e popularizou ferramentas superiores; o desenvolvimento do comércio e da moeda como formas de se lidar com a produção a partir de sua propriedade abstrata, seu valor de troca, e não mais a partir de suas propriedades concretas e particulares; a criação do alfabeto como escrita mais apropriada à análise de enunciados e fácil de dominar; o surgimento de uma classe autônoma e numerosa de artesãos e marinheiros, bem como o fortalecimento de uma elite comercial que enfraqueceu o poder da aristocracia rural, o que, mediante o período de transição das tiranias, conduziu a uma muito menor centralização do poder em relação às civilizações orientais e ensejou o surgimento da democracia; e a democracia, por sua vez, fomentava a participação política e estimulava o livre debate de ideias, o questionamento das tradições, a manifestação de diversos pontos de vista sobre uma mesma questão.

Neste contexto, a elite dos cidadãos que dispunham de ócio e dos recursos para a atividade especulativa – que, contudo, não nasceu dissociada de questões práticas e envolvimentos políticos – pode fazer surgir pela primeira vez um pensamento conceitual, de teor racional, de caráter sistemático e em constante questionamento e renovação de si mesmo: a filosofia, e as bases de sua coirmã, a ciência. Refratário ao determinismo, Novack mostra o quanto estes rebentos do pensamento foram criativos em sua forma e conteúdo revolucionários – quando comparados às reformas do pensamento religioso levadas a cabo com o advento das religiões monoteístas em todo o mundo antigo mais ou menos na mesma época – e variados em suas proposições e contradições, problemas e limitações.

O materialismo jônico

Os primeiros filósofos surgiram na cidade de Mileto, na Jônia (região costeira da atual Turquia). Os milésios deram as bases para o posterior desenvolvimento do conceito de matéria. Buscavam explicar a origem da vida e do universo, a sua diversidade de formas e suas transformações constantes recorrendo a causas materiais, não mais à ação sobrenatural de deuses. Heráclito, da cidade de Éfeso, foi o criador da dialética. Para ele, tudo estava em constante movimento exatamente porque a realidade se estruturava a partir de opostos que oscilavam entre a harmonia e o conflito. Já os primeiros atomistas eram assim chamados por conceberem que o mundo era composto por átomos (semelhantes em alguns aspectos aos da ciência atual) e por vazio, através do qual os átomos se deslocavam, aproximavam-se uns dos outros ou se afastavam. Com esse mecanismo, explicavam a origem, a variedade e a dinâmica da realidade, da própria alma humana e dos deuses, que em sua concepção de mundo não tinham grande poder sobre a realidade. Os atomistas desenvolveram o materialismo jônico absorvendo as contribuições dos primeiros idealistas: a concepção de que a realidade era constituída segundo leis racionais matemáticas, de Pitágoras; relativizando a ontologia da permanência absoluta de Parmênides. Puderam fazer isso graças ao trabalho de pensadores como Empédocles e Anaxágoras, que reabilitaram a experiência sensível e a observação como fontes de conhecimento (totalmente repudiadas pelos idealistas), desde que mediadas pela crítica racional.
Outros três desenvolvimentos fundamentais aconteceram sob o espírito do materialismo. Criou-se a medicina hipocrática, que buscava compreender a saúde e a doença em termos físicos, não como produto de forças espirituais. Nasceu a história, com Heródoto e Tucídides, como explicação secular do desenvolvimento das sociedades humanas distinta da mitologia que embasava a religião. Por fim, a sofística, como prática filosófica de professores e oradores itinerantes que investigavam a linguagem como instrumento de ação política na democracia e acabaram por fornecer as bases sobre as quais o idealista Aristóteles desenvolveria a lógica, um dos mais importantes instrumentos do pensamento científico. Contribuíram também para a crítica dos valores aristocráticos tradicionais com seu humanismo relativista.

O idealismo ateniense

O idealismo surgiu nas colônias gregas no sul da Itália, alcançou seu mais alto cume, porém, na Atenas dos séculos IV-V, com Sócrates, Platão e Aristóteles. Um dos papéis centrais do idealismo foi reabilitar a religião, desacreditada pelo relativismo sofístico e pelo materialismo. Assim, criaram os alicerces da teologia: a justificação filosófica e racional da religião, pilar ideológico e institucional de toda ordem oligárquica. Novack afirma que o idealismo “Era a expressão ideológica da aristocracia escravista em sua batalha defensiva pela supremacia contra as tendências democratizantes das forças mercantis e plebeias das cidades-estado gregas” (NOVBACK, 2015, p. 181), visto que “A seus olhos [dos idealistas] os homens eram desiguais e estavam divididos em classes por natureza. Cada um ocupava seu lugar apropriado na hierarquia do corpo civil. Só desta maneira os homens poderiam ser realmente humanos e tornar-se totalmente civilizados” (idem, p. 182).

Isto é decerto esquemático demais, uma vez que Sócrates fora condenado à morte sob acusação de ateísmo, embora de fato tenha sido julgado pelo regime democrático. Platão foi o mais severo crítico de Homero, cujos poemas representavam por excelência os valores aristocráticos, postulou que o valor dos homens derivava da qualidade de suas almas, não da família em que nasceram, e professou que a educação deveria ser dada tanto a homens quanto a mulheres e que estas poderiam governar (algo inaceitável para qualquer grego e principalmente para a aristocracia escravista); Aristóteles formulou justificativas teóricas para a escravidão, mas por outro lado era um meteco, um estrangeiro sem direito à cidadania. É claro que estas e outras contradições em relação ao esquema proposto só poderiam ser devidamente assentadas em vários estudos de fôlego focados em cada uma destas grandes figuras do pensamento. Novack chama atenção para algumas destas dissonâncias em sua explicação. Num livro introdutório e sintético como este, não poderia fazer mais que isso.

O eclipse do materialismo antigo

Os capítulos finais são dedicados ao desenvolvimento da filosofia helenística e romana, com o epicurismo, o atomismo de Lucrécio e a sátira cética de Luciano. Não foram os momentos de maior criatividade da filosofia antiga, mas Novack situa Lucrécio, com seu poema Sobre a Natureza, como o autor da mais acabada exposição do materialismo antigo. Luciano, segundo Engels, teria sido o “Voltaire da antiguidade”. Enfim, As Origens do Materialismo encerra com a indicação de que, durante a Idade Média, a filosofia foi dominada pelo idealismo, antes de o materialismo renascer no início da Idade Moderna, muito embora até hoje o idealismo ainda seja a ideologia dominante em nossa sociedade e em nossas academias, não obstante o crescente desenvolvimento e fortalecimento do materialismo e da ciência.

Na longa epopeia do pensamento que nos é narrada por Novack neste livro, delicioso de ler apesar da densidade do assunto, identificamos apenas uma lacuna digna de nota. Como não aborda a filosofia dos Cínicos, Novack afirma que nenhuma expressão filosófica do materialismo antigo correspondeu às classes mais baixas. Estas recorriam sobretudo à religião e ao mito, mas também à ideologia de camadas superiores. Sabemos que foi isto o que se deu mais comumente, mas a filosofia dos cínicos expressa, no helenismo, o ponto de vista dos setores mais pauperizados da sociedade e inclusive de filhos de escravos, pregando uma ética da abstinência, o ascetismo material e a marginalização social. Então, que a filosofia fora atividade quase que exclusiva das camadas mais abastadas é inegável, mas não se pode confundir a ideologia de classe com a classe dos ideólogos. Afinal, Marx e Engels não eram proletários, mas sua filosofia, exercida por membros ociosos (embora não da elite) claramente distintos do proletariado, expressa como nenhuma outra os interesses do proletariado alijado da própria atividade teórica.

Um capítulo sobre o cinismo enriqueceria bastante o valioso texto de Novack: Diógenes de Sínope, o mais folclórico de todos os filósofos, que vivia num barril e teria dito que na casa de um rico não há lugar para cuspir senão em sua cara não poderia faltar numa história do materialismo antigo. No entanto, para um livro que abrange um processo histórico tão longo em tão poucas páginas, que condensa uma matéria tão complexa em um desenvolvimento explicativo de validade, rigor, coerência e clareza raríssimas em obras do gênero, esta lacuna é de fato um detalhe quase relevável, por relevante que seja. Talvez o maior problema seja a edição, com não poucas gralhas, falhas de pouco peso na tradução e outras tantas na revisão que se deveriam consertar. Em todo caso, um livro de tamanho valor educativo para o leigo e tão instigante em sua proposta explicativa para o estudioso do tema merece ser lido e relido, editado e reeditado, até que o materialismo triunfe como emancipação da humanidade e de seu pensamento.

Referências bibliográficas

NOVACK, George. Introdução à lógica marxista. São Paulo: Sundermann, 2006.
NOVACK, George. As origens do materialismo. São Paulo: Sundermann, 2015.

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