Por Martin Hernandez, da Direção da LIT-QI - Texto de 2006 - publicado na Marxismo Vivo
Houve
muita resistência nas organizações de esquerda a reconhecer que o
capitalismo fora restaurado na ex-URSS e no restante do Leste europeu.
De certa forma, isso é lógico, porque o triunfo da Revolução Russa foi a
maior vitória da história do proletariado mundial, e não é fácil
reconhecer que ela tenha terminado em uma derrota. No entanto, hoje,
vinte anos depois de iniciada a restauração, essa questão está deixando
de ser polêmica. Quaseninguém se dispõe a negar a realidade. Mas em
relação a Cuba a coisa é diferente.
Embora
a realidade cubana não possa dar margem a dúvidas, tanto sobre a
restauração quanto sobre o papel de protagonista de Fidel Castro nessa
tarefa, são muito poucos aqueles que reconhecem esses fatos. A maioria
do movimento trotskista, por exemplo, opina que Cuba contínua sendo um
Estado operário e que a direção cubana, com Fidel Castro à frente,
continua, no mínimo, antiimperialista. Contudo, nem uma coisa nem outra é
verdadeira.
Como
falar de um Estado operário onde não há monopólio do comércio exterior,
onde a economia não responde a uma planificação central e onde imperam
as leis do mercado capitalista? E em relação à direção cubana: como
afirmar que continua sendo antiimperialista no momento em que está
entregando o pais ao imperialismo europeu e justo quando Fidel faz
elogios escancarados a seus governos, em especial ao rei da Espanha?
Seria
possível dizer que Fidel não é antiimperialista, e sim antiamericano,
mas isso tampouco é verdadeiro. Fidel Castro, como 80% das pessoas do
planeta, é anti-Bush. É contra o governo dos EUA,'mas atualmente não
está contra o imperialismo americano. Um exemplo: não está contra o
Partido Democrata dos EUA, pelo contrário, busca um acordo com ele. Por
isso, em seu recente livro em forma de entrevista “Fidel Castro. Biografia a duas vozes”,
faz todo tipo de elogios aos seus dirigentes. Entre outras coisas, diz
do ex-presidente John Kennedy (o mesmo que iniciou a Guerra do Vietnã,
mandou invadir Cuba e ordenou dezenas de atentados contra o próprio
Fidel): “(..) o presidente Kennedy,
realmente uma pessoa de talento, teve a desgraça de enviar essa
expedição contra nós, a da Praia Girán e teve que assumi-la. Foi
corajoso frente à derrota”.(1) Sobre a família do ex-presidente, afirma: “(..)
depois do assassinato de John Kennedy, mantiveram contato conosco e
travamos relações realmente amistosas. São provas de que no nos deixamos
levar pelo ódio”. (2) Sobre Jimmy Carter (3), ex-presidente pelo Partido Democrata, diz: ”(..)
Carter era um homem étieo. S ua política foi eonstrutiva em relação a
Cuba e ele foi um dos presidentes mais honrados dos EUA. Tinha uma
ética, uma moral. Carter não era rapaz de dizer sequer uma mentira. Era
um homem bom, deeente... poderíamos ter discutido a Lei de Ajustes, mas
não o fizemos porque não queríamos perder tempo e preyudieá-lo.
Resolvemos até os seqüestros de aviões... chegavam a Cuba aviões
seqüestrados nos EUA.' Nós os devolvemos a Carter Tenho a impressão de
que os seqüestradores foram condenados a 40 anos de prisão... tomamos a
decisão de entregá-los às autoridades americanas. ” (5)
Os
fatos, e muitas das declarações de Fidel, são categóricos. Por que
então é tão difícil aceitar que em Cuba o capitalismo foi restaurado e
sua direção, atualmente, não tem nada de anticapitalista e é muito pouco
antiimperialista? Porque, por um lado, Cuba foi, no continente
americano, o mesmo que a Rússia no mundo: a maior vitória da história do
proletariado, e, por outro, porque à frente de Cuba encontra-se Fidel
Castro, 0 homem que dirigiu a luta contra o ditador Batista, a ruptura
com o imperialismo, a expropriação da burguesia, e que justamente por
ter feito tudo isso se converteu na direção de milhões de trabalhadores,
camponeses e jovens não só de Cuba mas também da América Latina e do
mundo. Justamente por isso, para milhões de seus seguidores é
inaceitável sequer pensar que o homem que dirigiu a revolução e
expropriou os capitalistas possa ser agora o chefe da restauração.
Os
argumentos para justificar o injustificãvel são os mais variados. A
maioria opina que não há restauração porque Fidel e o povo cubano são
contra. Muitos, possivelmente a maioria, consideram que Fidel, dado o
isolamento da Ilha, se viu obrigado a fazer concessões ao capitalismo,
mas consideram essas concessões inevitáveis para manter o caráter
socialista da revolução. Também há os mais críticos, que opinam que as
medidas restauracionistas estão crescendo, mas o responsável por isso
não é Fidel, e sim aqueles que 0 rodeiam. Por fim, há uma importante
minoria opinando que realmente o capitalismo esta sendo restaurado e
Fidel é o principal responsável, mas chegam à nostalgica conclusão de
que tudo seria diferente se Che Guevara estivesse vivo.
Os indivíduos na história
Para
o senso comum é muito difícil acreditar que a mesma pessoa que dirigiu
uma revolução que expropriou a burguesia possa chegar a dirigir a
restauração do capitalismo. E verdade que esta é uma contradição, mas
também é verdade que se trata de uma contradição muito freqüente.
Stalin,
ninguém pode negar, foi um abnegado militante revolucionário,
construtor do Partido Bolchevique e, como tal, em mais de uma
oportunidade, colocou sua vida em risco. A esse respeito basta recordar
que de todos os dirigentes bolcheviques ele foi quem passou mais tempo
nas prisões do czarismo. No entanto, esse mesmo Stalin haveria de se
transformar no verdugo da revolução e do Partido Bolchevique. Ninguém
pode negar também que na Nicarágua, Daniel Ortega e seus companheiros da
Frente Sandinista de Libertação Nacional foram heróicos militantes na
luta contra a ditadura de Anastasio Somoza. Porém, hoje, o mesmo Daniel
Ortega disputa as eleições presidenciais de seu pais como candidato de
uma aliança entre a FSLN e o PLN (Partido Liberal Nacionalista), fundado
por Anastasio Somoza (pai), o assassino do general Augusto Cesar
Sandíno. A história está cheia desse tipo de situações. Por isso é
impossível entender o que está ocorrendo em Cuba em função do passado
revolucionário de Fidel Castro.
Para
o senso comum, a história é a resultante da luta entre homens bons e
maus. Para os marxistas, a história, desde que existe a sociedade
dividida em classes, é a resultante do enfrentamento entre as classes
sociais: "A história da sociedade é a história da luta de Classes”.(6)
O marxismo não nega a importância dos indivíduos na história, como
Hitler, Lênin, Perón, Lula, Fidel Castro, Francisco Franco ou Che
Guevara. Mas para o marxismo esses indivíduos, mais ou menos talentosos,
mais ou menos valentes, nunca tiveram uma existência alheia à luta de
classes. Por isso, para entender o comportamento dessas personalidades,
nesse caso o de Fidel Castro, é necessário fazer não só uma analise
polídca desses indivíduos e dessas direções, como também uma análise de
classe. Qual é sua origem social? A que classes representam ou
representaram? Em que classe se apoiavam ou se apóiam?
O caráter de classe da direção castrista e do Estado cubano
Se
analisamos a direção castrista do ponto de vista de suas propostas
políticas encontraremos uma profunda contradição entre seu passado e seu
presente. Mas se analisamos essa mesma direção do ponto de vista
social, tal contradição desaparecerá.
O
Movimento 26 de Julho, que levou adiante a luta contra o ditador
Batista, era um movimento de origem e caráter pequeno-burguês, que se
apoiou fundamentalmente nos camponeses pobres, no movimento estudantil e
nas classes médias das cidades. Como ral, foi um movimento extremamente
progressivo e teve um papel revolucionário, a tal ponto que avançou
muito além de suas intenções originais, chegando a expropriar o
imperialismo e a burguesia e dando origem assim a um Estado de novo
caráter, um Estado operário, já que estava baseado em uma economia
estatizada e planificada.
Entretanto,
esse Estado operário nasceu com uma grave contradição: à sua frente não
estava a classe operária com seus organismos e menos ainda havia
qualquer vestígio de democracia operária. Por isso, do ponto de vista
científico, era equivocado definir o Estado cubano simplesmente como
“operário”. O correto era defini-lo, desde seu nascimento, como um Estado
operário burocratizado. O caráter do novo Estado cubano é uma
continuidade do caráter do Movimento 26 de julho, um “partido-exército”,
cheio de corajosos lutadores mas no qual não havia a menor democracia,
nem operária e nem de nenhum outro tipo.
O
caráter de classe da direção castrista deu origem a muitas
controvérsias no interior do movimento trotskista. Muitos setores dizem
que é verdade que o Movimento 26 de Julho e sua direção tinham caráter
pequeno-burguês, mas ao efetuar uma ação revolucionária (expropriar a
burguesia e o imperialismo e construir um Estado operário) modificou seu
caráter social, convertendo-se em uma direção operária revolucionária.
Esse tipo de raciocínio nega o marxismo porque um indivíduo pode chegar a
mudar de classe, mas um movimento social não pode fazer o mesmo. Como
diz Nahuel Moreno: "Nenhum setor
social privilegiado aceita perder seus privilégios e transformar-se em
outro setor social inferior, diferente. Pelo contrário, todo setor
social com privilégios tende a aumentá-los". (7) A direção de um setor
privilegiado, burguês ou pequeno-burguês, pode “obrigada pelas
circunstâncias objetivas, ir mais longe do que pretendia no terreno
político para defender seus privilégios e aumenta-los, quando se vê
ameaçada de perdê-los, mas nunca combaterá seus próprios privilégios
unindo-se aos setores mais explorados que lutam contra eles." (8)
É
justamente essa análise de Moreno que explica porque o Movimento 26 de
Julho, contradizendo seus planos políticos originais, chegou a
expropriar a burguesia e o imperialismo. Mas é também essa análise que
explica porque essas direção foi incapaz de levar até o fim o processo
revolucionário e a partir daí começou a retroceder até chegar à
restauração do capitalismo.
O castrismo foi além de suas intenções
A
direção castrista foi muito mais conseqüente em sua luta contra a
ditadura que a direção sandinista na Nicarágua. Por isso, não se
conformou com a derrubada da ditadura, e procurou recuperar a economia
destroçada pelo governo corrupto de Batista. Sua intenção não era
expropriar o imperialismo e a burguesia, mas se viu obrigada a fazê-lo
em função do boicote de ambos.
Assim,
por exemplo, o novo governo cubano fez um acordo muito vantajoso com a
URSS para importar petróleo. O governo dos EUA se opôs a esse acordo e
as destilarias instaladas em Cuba, que eram todas americanas, negaram-se
a destilar o produto importado da URSS. Essa medida deixou o governo
cubano sem alternativas, o que o levou a expropriar as destilarias
americanas. Esse processo foi ocorrendo gradualmente e, em pouco tempo,
atingiu o conjunto da economia.
A
luta conseqüente por apoiar o novo governo surgido da luta contra
Batista levou a direção do Movimento 26 de Julho não só a expropriar o
capitalismo e a burguesia como também a diferenciar-se inclusive da URSS
e do stalinismo a nível mundial. A direção castrista tinha consciência
de que Cuba estava isolada e para se defender precisaria atacar. Assim,
no mesmo momento em que a URSS e todo o stalinismo mundial defendiam a “coexistência pacífica com o imperialismo", Fidel Castro dizia que era necessário “transformar a Cordilheira dos Andes na Sierra Maestro do continente americano” (9) e Che Guevara clamava pela construção de "dois, três, muitos Víetnãs".
Essas não eram frases de efeito ao estilo daquelas que pronuncia
atualmente Hugo Chávez. Para concretizar seu projeto, Fidel Castro
colocou Manuel “Barba Roja” Piñeiro, que era vice-ministro do interior, à
frente do secreto Departamento de Libertação, encarregado de organizar o
treinamento político e militar de centenas de guerrilheiros de vários
países latino-americanos e coordenar as medidas de apoio a vários
movimentos de libertação nacional, como foi o caso do movimento
encabeçado por Ben Bella na Argélia.
As limitações do castrismo
Quando
os bolcheviques dirigiram a tomada do poder, buscaram a todo o momento,
por intermédio dos Soviets e dos sindicatos, e com base na democracia
operária, assegurar que a classe trabalhadora tomasse em suas mãos a
construção do novo Estado. Por outro lado, a direção bolchevique
aproveitou o prestígio adquirido por sua revolução para chamar a
construção do estado-maior da revolução mundial, a III Internacional, em
que os bolcheviques se integraram como parte minoritária da direção.
Revolucionários
de muitas partes do mundo procuraram, depois do triunfo da Revolução
Russa, sem levar em consideração a realidade da luta de classes,
construir soviets e tomar o poder. A direção bolchevique, Lênin em
particular, combateu duramente esses falsos bolcheviques e chamou-os a
respeitar o movimento real da classe operária e das massas.
Com
a direção castrista aconteceu o oposto e, por isso, tudo o que fez de
progressivo acabou se transformando em seu contrário. Expropriou a
burguesia e o imperialismo, mas em nenhum momento lutou para que a
própria classe operária e o povo, por intermédio de suas organizações,
estivessem à frente do novo Estado.
A
direção castrista buscou impulsionar a revolução em outros países mas,
ao contrário da direção bolchevique, nunca viu a revolução cubana como
algo tático em função da revolução latino-americana e mundial. Encarou a
revolução nos outros países como uma tática para defender a revolução
cubana; isso significa que a direção cubana sempre viu a revolução
mundial desde uma ótica nacional.
A
máxima expressão do caráter nacionalista dessa direção é o fato de que
nunca defendeu, apesar de seu prestígio no mundo inteiro, a construção
de uma direção internacional da qual ela deveria fazer parte. Assim, o
caráter nacionalista e pequeno-burguês da direção castrista acabou
afetando o conjunto da política internacional do castrismo e fazendo com
que a Revolução Cubana se isolasse cada vez mais.
Por
toda a América Latina surgiram jovens, na maioria das vezes
provenientes da pequena-burguesia, dispostos a repetir a experiência
cubana em seus países. A direção cubana, longe de orientá-los em direção
à classe operária, suas organizações e suas lutas, os convocou a
organizar focos guerrilheiros, sem levar em conta a situação da luta de
classes, para “criar” as condições para a revolução.
Essas
posições da direção castrista penetraram profundamente entre muitos
lutadores, especialmente na vanguarda estudantil latino-americana e,
como não poderia deixar de ser, essa experiência terminou em tragédia.
Processos revolucionários foram abortados. Golpes sangrentos foram
provocados. Milhares de honestos militantes morreram nessa aventura.
Entre eles o próprio Che Guevara, assassinado na Bolívia. Frente a esses
desastres, a direção cubana, dada sua natureza de classe, foi incapaz
de fazer um balanço e reorientar sua política em direção à classe
operária e suas lutas. Pelo contrário, acabou se integrando de forma
definitiva ao bloco dirigido pela URSS e sua política de “coexistência
pacífica” com o imperialismo.
A
nova política de Cuba passou por sua maior prova em 1979. Nesse ano, a
Frente Sandinista de Libertação Nacional, depois de destruir a Guarda
Nacional de Somoza, tomou o poder na Nicarágua. As simpatias que
existiam na Nicarágua pela Revolução Cubana eram muito grandes. Por
outro lado, os dirigentes sandinistas se consideravam discípulos de
Fidel Castro. Depois de tomar o poder, a direção da FSLN viajou a Cuba
para conversar com Fidel, que os felicitou e lhes deu um conselho: "Não façam da Nicarágua uma nova Cuba”.
O conselho foi claro. Em outras palavras, Fidel disse aos sandinistas:
não avancem além da derrubada da ditadura, não expropriem o imperialismo
e a burguesia, não construam um Estado operário. Com esse conselho o
destino da Nicaragua estava selado _ e o de Cuba também.
Da “coexistência pacífica” à restauração capitalista
A teoria utópica e reacionária de Stalin do socialismo em um só país
levou
à política contra-revolucionária da coexistência pacífica com o
imperialismo e esta, como não poderia deixar de ser, conduziu à
restauração do capitalismo no coniunto dos ex-estados operários. A
coexistência pacífica com o imperialismo significou, na prática,
permitir que as maiores potências econômicas do planeta não apenas
mantívessem sua superioridade, e com isso seu domínio sobre a economia
mundial, como também ampliassem esse domínio em dettimento dos Estados
operários. Esse fato levou os novos estados a uma crise crescente, do
ponto de vista econômico e social, de tal forma que terminaram frente a
duas alternativas: ou retomavam, mediante a luta pela revolução mundial,
a batalha por recuperar suas economias, ou se entregavam, mediante a
restauração do capitalismo, aos braços do imperialismo. A crise era tão
grave que não lhes restava mais do que essas duas alternativas. A
história é bastante conhecida. Por razões de classe, as burocracias
governantes não estavam dispostas a pôr em risco seus priviégios, por
isso, de conjunto, caminharam em direção à segunda opção.
Como
os demais Estados operários, Cuba estava diante dessas mesmas
alternativas, e é evidente que não optou por expandir a revolução. Basta
ver a experiência da Nicarágua que citamos anteriormente. Dessa forma,
frente ao isolamento que ela mesma havia contribuído para criar, só lhe
restava a restauração como opção. E assim, por essa razão, estamos
presenciando o triste rim de uma direção que, por suas limitações
políticas e especialmente de classe, foi incapaz de levar sua própria
experiência às últimas conseqüências.
E se o Che estivesse vivo?
Como
dizíamos anteriormente, há muita gente, mesmo em Cuba, que diz que tudo
seria diferente se 0 Che estivesse vivo. De certa forma, isso também é
lógico, porque Che Guevara morreu quando ainda prevalecia a linha de
exportar a revolução cubana por meio da guerrilha. Por outro lado, a
imagem do Che está associada ã sua valentia, a seu desprendimento em
relação aos bens materiais e à sua luta contra qualquer privilégio
pessoal.
Evidentemente,
não se trata de fazer ficção política, mas é bastante difícil imaginar
que se o Che estivesse vivo o capitalismo não teria sido restaurado em
Cuba, ou que o Che estaria encabeçando, contra Fidel, a luta contra a
restauração. Por que dizemos isso? Porque a direção cubana seguiu o
curso que seguiu por suas profundas limitações, que não eram
essencialmente políticas ou teóricas, e sim de classe, e o Che não era
diferente do resto. Muito pelo contrário, era quem mais expressava essas
limitações. Che Guevara fazia parte de uma geração de jovens de
esquerda argentinos, da década de 50, que foi o que de mais reacionário
existiu nesse país. A juventude universitária, de “esquerda”, em função
de seu antiperonismo, odiava o movimento operário. A juventude
universitária, dirigida pelo radicalismo e pelo PC, desfilava nas mas com
a bandeira: “Livros sim alpargatas, não!
A
respeito do Che e de sua falta de relação com o movimento operário há
um fato muito significativo: ele era um jovem muito simples e ficou
impactado com a luta para derrubar o ditador Batista. Entretanto, não se
sentiu tão impactado pela revolução boliviana de 1952, apesar de ter
passado pela Bolivia alguns meses depois de iniciado o processo. A maior
revolução operária do continente, a derrota do exército pelos mineiros,
a fundação da COB, as milícias operárias e camponesas que impuseram o
duplo poder na Bolívia, não causaram grande impressão em Che Guevara.
Ele nunca estudou esse processo e muito menos extraiu qualquer conclusão
do mesmo; a tal ponto que quando voltou à Bolívia em 1966 para
organizar o foco guerrilheiro, em nenhum momento procurou entrar em
contato com os mineiros, vanguarda incontestável por décadas da
revolução boliviana e latino-americana.
Guevara,
como roda a direção castrista, nunca lutou para que a classe operária
cumprisse um papel destacado na revolução e na transição ao socialismo -
e muito menos lutou pela construção do partido revolucionário da classe
operária a nível nacional e mundial. Para sermos mais precisos, a
direção castrista e o Che em particular, com sua teoria do “foco
guerrilheiro”, tinham uma posição contrária ã tradição marxista nesse
terreno. Por outro lado, com freqüência Che Guevara é retratado como um
lutador contra a burocratização do Estado operário cubano. Isso é um
equívoco. O Che foi um exemplo vivo de uma luta contra privilégios
materiais para os dirigentes da revolução e do Estado, mas nunca lutou
contra a burocratização do Estado; nunca defendeu a democracia operária,
a única possibilidade de lutar, com possibilidades de êxito, contra a
burocratização.
O
Estado operário cubano não se degenerou anos depois da tomada do poder;
ele nasceu burocratizado e Ernesto Guevara foi, desde o início, um dos
principais dirigentes desse Estado.
As direções russa e cubana diante da restauração
No
decorrer deste texto mostramos a diferença qualitativa entre a direção
bolchevique, de Izênin e Trotsky, e a direção cubana de Fidel Castro e
Che Guevara. No entanto, uma leitura superficial poderia nos levar a pôr
um sinal de igual entre o comportamento de ambas as direções frente à
restauração. Em ambos os processos houve uma direção que encabeçou a
expropriação do imperialismo e da burguesia e ambos terminaram com a
restauração do capitalismo. Entretanto, a diferença é qualitativa, já
que a ex-URSS só pôde chegar à restauração com a destruição prévia do
Partido Bolchevique pelas mãos do stalinismo. Pelo contrário, em Cuba
não foi necessário destruir a antiga direção para restaurar o
capitalismo. A mesma direção que dirigiu a expropriação da burguesia foi
a que, sem crises, encabeçou a restauração. Isso demonstra que sempre
houve uma profimda unidade de classe entre a direção russa e a cubana,
mas não entre a direção de Lênin e Trotsky com a de Fidel, e sim entre a
direção stalinista e a de Fidel, unidade que existiu mesmo nos momentos
em que a direção castrista tinha posições políticas diferentes das
posições stalinistas.
O balanço da direção castrista e a construção da direção revolucionária
Em
meio a uma situação revolucionária como a que se vive atualmente na
América Latina, a batalha por construir uma direção revolucionária é a
“mãe de todas as batalhas”, mas essa construção não começa do zero.
Trotsky, fazendo o balanço da Revolução Russa, dizia: "Sabemos
com certeza que qualquer povo, qualquer classe e mesmo qualquer partido
se instruem principalmente por experiência própria, mas isso não
significa, de modo algum, que seja de pouca monta a experiência dos
demais países, classes e partidos. Sem um estudo da grande Revolução
Francesa, da revolução de 1848 e da Comuna de Paris, jamais teríamos
levado a cabo a Revolução de Outubro." (10) É impossível chegar à
vitória no continente americano se não formos capazes de estudar e
extrair todas as conclusões da única revolução socialista triunfante no
continente, a Revolução Cubana. Essa é a importância desse balanço
histórico da direção castrista, não só para o presente, mas sobretudo
para o futuro.
Há
conclusões fundamentais a extrair da grande Revolução Cubana que
iluminam nossa batalha no continente, tanto no terreno objetivo como no
subjetivo. Em primeiro lugar, a Revolução Cubana mostrou que é possível
enfrentar e derrotar a burguesia e o imperialismo. Se isso foi possível
em um pequeno pais situado a poucos quilômetros dos EUA, por que não
seria possível em países muito mais importantes do continente, como
Argentina, Brasil, Colômbia, Chile ou México? Em segundo lugar, as
conquistas da Revolução Cubana, na eliminação da pobreza e na melhoria
da saúde e da educação, mostram que esses problemas, que pareciam
endêmicos do continente, podem ser resolvidos com a expropriação da
burguesia e do imperialismo. Em terceiro lugar, a realidade mostrou que
sem a extensão da revolução ao resto do continente e do mundo, o caminho
de toda revolução vitoriosa que exproprie o capitalismo é
inevitavelmente a restauração do próprio capitalismo. Em quarto lugar, a
realidade também mostrou que a direção cubana, que apareceu em seu
momento aos olhos de milhões de lutadores de todo o mundo como uma
alternativa de direção revolucionária frente à decadente burocracia
stalínísta, sucumbiu vítima de suas graves contradições politicas e de
classe. Em quinto lugar, e a título de conclusão: é inegável que a
Revolução Cubana potencializou no mundo inteiro as energias
revolucionárias da classe operária e dos povos, mas, contraditoriamente,
em relação à superação da crise de direção revolucionária, o castrismo
cumpriu um papel nefasto. O prestígio adquirido pela direção castrista
por haver dirigido a revolução foi tão grande que atrasou por décadas a
grande tarefa de superar a crise da direção revolucionária. O castrismo
cumpriu um papel objetivo de afastar a vanguarda das duas grandes
tarefas estratégicas dos revolucionários: a relação com a classe
operária e a construção do partido da revolução a nível nacional e
mundial.
O
castrismo influenciou e confundiu várias gerações de lutadores bem como
organizações inteiras e importantes dirigentes marxistas
revolucionários. Nahuel Moreno, sem dúvida o mais importante dirigente
do trotskismo latino-americano, não conseguiu escapar da pressão do
castrismo nos primeiros anos da revolução. Assim, por exemplo, em um
texto de polêmica com Che Guevara, expressava idéias como esta: “Fidel e Che demonstraram nos fatos e popularizaram várias questões políticas e teóricas de fundamental
importância, que nos permitem dizer deles, parafraseando o que Sartre
disse da filosofia de Marx, que não há hoje em dia outra corrente
revolucionária na America a não ser o castrismo”. (11)
Nahuel
Moreno, ao contrário da ampla maioria dos outros dirigentes do
trotskismo, manteve-se fiel à classe operária e ao marxismo e, por essa
via, foi rompendo qualquer tipo de relação com o castrismo. Prova disso é
que as reflexões que expusemos neste artigo estão inspiradas nas
elaborações de Moreno das décadas de 70 e 80. No livro Conversando com
Nahuel Moreno, ele faz uma reflexão muito profunda sobre esse processo
de sua relação e ruptura com o castrismo, que deve ser levada em conta
por todos aqueles que lutam pelo poder da classe operária. Moreno diz: "Ao
longo de minha vida política, depois, por exemplo, de observar com
simpatia o regime que surgiu da Revolucão Cubana, cheguei à conclusão de
que é necessário continuar com a política revolucionária de classe,
ainda que atrase nossa chegada ao poder em vinte ou trinta anos ou o
quanto for necessário. Nós desejamos que a classe operária chegue ao
poder verdadeiramente, por isso queremos dirigi-la”.
Notas
(1) "Fidel Castro. Biografia a duas vozes". Entrevista de Ignacio Ramonet, Editorial Boitempo, São Paulo, Brasil, p.272
(2) Idem.
(3)
Jimmy Carter, convidado por Fidel Castro, visitou Cuba entre 12 e 17 de
maio de 2092. Realizou uma conferência na Universidade de Havana,
transmitida ao vivo para toda a Ilha, em que desferiu um duro ataque
contra a Revolução Cubana. Posteriormente, Fidel fez uma homenagem a
Jimmy Carter diante de milhares de pessoas em um estádio de beisebol.
(4)
Depois do triunfo da revolução houve muitos casos em que ativistas
antiimperialistas seqüestravam aviões nos EUA e os levavam a Cuba e
pediam asilo político.
(5) “Fidel Castro. Biografia a duas vozes." pp.370/371
(6) Manifesto Comunista, Karl Marx.
(7) Teses para a atuazizacão do Programa de Transifãø, Nahuel Moreno, CS Editora, São Paulo, Brasil, p. 61
(8) Idem, pp. 61/62
(9) Discurso de Fidel Castro, 21 de julho de 1961, Santiago de Cuba
(10) Lecciones de Octubre, León Trotsky, El Yunque Editora, Buenos Aires, p.15.
(11) "Dos Métodos Frente a la Revolución Latinoamericana", Nahuel Moreno.